José Manuel Pureza e Teresa Cravo*
publicado na Revista
Crítica de Ciências Sociais, no. 71, junho/2005.
por
Theo A. R. Sant'Ana[2]
Apresentado em reunião
do GEPASM (Núcleo DRI/UFPB) em Outubro/2015.
A vertente realista das Relações
Internacionais (RI), mainstream desse campo de estudos e
representante de um modus operandi positivista, vem sendo criticada e questionada – inclusive em
seus caracteres liberais – por um
conjunto diverso de vertentes de estudo pós-positivistas desde a segunda metade
do século XX. O que Pureza e Cravo apontam é que os Estudos para a paz† consolidaram-se como
materialização dos desejos pós-positivistas, mas vêm deixando subverter sua postura
epistemológica, antes estado da arte de capacidade crítica, esvaziando-se como
fonte de contestação teórica. Além da capacidade crítica do campo estar minada,
outra consequência é que aplicações do campo de Estudos de Paz vêm reiterando
estruturas de dominação – das quais o próprio realismo nas RI faz parte, em seu
discurso – antes criticados pela própria área.
O argumento é dividido em três partes,
coincidentes com as seções do texto: “Itinerário de uma ruptura anunciada” (pp.
6-10) apresenta a seara dos Estudos de Paz segundo seu papel rompedor de
paradigmas dentro das RI, uma função buscada na própria área, sobretudo nos
anos 1980; “Emancipação ou padronização?” (pp. 10-14) mostra a aceitação de
preceitos e valores dos Estudos de Paz em políticas globais, contraposta à padronização
indevida desses mesmos princípios mundialmente; e “Caminhos e descaminhos de um
retorno à crítica” (pp. 14-17) coloca o enfraquecimento da capacidade crítica
dos Estudos de Paz, acompanhado do ressurgimento do paradigma realista das RI.
Os autores relembram que as tentativas de
um estudo alternativo às RI em meados do século XX ainda tinham como problemas analíticos vieses fortemente
ligados à matriz positivista – especialmente o viés realista das RI (p. 7) – e o estatocentrismo (p. 9) (grifos meus). O positivismo é visto de forma negativa,
especialmente por suas cláusulas de imparcialidade do pesquisador e do descompromisso da ciência frente a valores; e
a reminiscência do estatocentrismo refletia a dificuldade em criar um estudo objetivo sobre a paz em
detrimento do Estado (grifos meus).
O triunfo sobre esses problemas analíticos
se deve fortemente à compreensão do norueguês Johan Galtung. Com os conceitos
de paz negativa e positiva, Galtung supera o
estatocentrismo, imbuindo esses conceitos de críticas
ferinas às estruturas de poder vigentes e a geração de desigualdades (p. 8). A
escalada do campo para bases mais críticas e não positivistas decorre do
triângulo da violência (representação gráfica da tripartição desse conceito),
em dois passos:
1.
Ampliação da
capacidade explicativa dos Estudos de Paz, ao abordar a violência – e por correspondência
dialética a paz – em seus níveis direto
(como “acto intencional de agressão”), estrutural (ou indireta, decorrente “da estrutura social em si entre humanos
ou sociedades – a repressão, na sua forma política, ou a exploração, na sua
forma económica;”), e cultural (que é “subjacente à estrutural e à directa, constituindo o
sistema de normas e comportamentos que legitima socialmente as anteriores”) (p.
9);
2.
Expõe a insuficiência
analítica tradicional (p. 10), propondo
os problemas de (i) reprodução da hierarquização entre centro e
periferia, (ii) legitimação dessa hierarquização pelo paradigma dominante nas
Relações Internacionais (o realismo), e (iii) fôlego insuficiente dos Estudos
de Paz para desafiar os dois problemas anteriores.
Além de os Estudos de Paz serem
eminentemente multidisciplinares, a segunda
cláusula positivista (de descompromisso científico
com valores) é rompida ao se colocar o campo de estudos como ciência normativa
de justificativa ética (p. 8). Em suma, nos anos 80 há a erupção do pensamento
buscador da Paz a nível mundial e dos Estudos para a Paz como escola diversa,
de base institucional-acadêmica sólida (p. 10).
Nos anos 90 há grande absorção dos
princípios dos Estudos de Paz nas políticas de nível global, com uma cópia do
quadro conceitual de Galtung dos anos 70 na Agenda para a Paz de 1992 (p. 11),
documento do então Secretário Geral da ONU, Boutros Ghali. Razão disso se dá
pelo livramento de conflitos político-diplomáticos e surgimento de conflitos
civis bastante violentos (p. 10). Após ampla aceitação, os preceitos dos
Estudos de Paz absorvidos pela ONU, a
comunidade científica, organizações multilaterais e diversas ONGs passaram a ser
utilizados para a implementação de políticas (p. 11). A absorção nesses termos
resultou na colonização do conhecimento dos Estudos para a Paz e a decadência
desse campo como margem crítica para as RI.
A “colonização” se refere às mazelas da
conduta generalista em processos de peace building:
ao examinar os estados falidos com o conhecimento que se tinha sobre os Estudos
de Paz, criou-se um receituário universal para a solução desses problemas,
aplicado em casos diversos sem se atentar a particularidades de cada situação –
no que se chama standard operation procedure. Por ser
um modelo de ação globalizado nas dimensões militar e de segurança,
político-constitucional, econômico-social e psicossocial (p. 12) disseminador
do modelo internacionalista liberal – que se apoia principalmente sobre a
democracia de competição eleitoral e a economia de mercado –, o standard operation
procedure tem, como alguns de seus problemas,
a insensibilidade de tropas operantes frente os locais e a rejeição local
daquela receita liberal (loc. cit.).
A decadência do campo como margem crítica
para as RI decorre da predeterminação institucional dos Estudos de Paz (a
exemplo do standard
operation procedure), que limita inputs criativos, críticos e construtivistas. Utilizando a menção dos
autores à “articulação kuhniana” entre paradigma (a sobreposição de visões de
uma comunidade científica sobre um objeto de estudo) e ciência normal (mapa do
conhecimento legítimo de uma comunidade científica) (pp. 6, 11); o que ocorre
com a absorção de preceitos de Estudos de Paz por instituições políticas é a
constrição da construção de novos paradigmas e o aumento da ciência normal.
Ficam escanteadas possibilidades de expansão via teorias e práticas do
desenvolvimento, teoria crítica social, análise cultural e de identidade
sexual, etc. (p. 13).
Desafios para que os Estudos de Paz retornem à crítica (que é
como os fundadores da disciplina a encaminharam) são a incorporação
dos Estudos de Paz às estruturas de poder anteriormente por eles criticadas (p.
13, 14), a ineficiência do campo para solução dos problemas a que se propõe
resolver e a deslegitimação do campo.
A incorporação institucional dos Estudos de
Paz ocorre pela utilização de pesquisadores em trabalhos de auditoria (p. 14),
que reflete o inchaço da ciência normal aliado à constrição dos paradigmas; o
congelamento do criticismo epistemológico dos Estudos de Paz pode ser o
ingresso desse campo de estudos para as instituições que antes eram por ele
mesmo criticadas.
A ineficiência dos Estudos de Paz pode se
dar tanto nas aplicações políticas de seus princípios – com restrições
institucionais à sua capacidade crítica – quanto no debate epistemológico –
gerando problemas de legitimidade. Nas aplicações políticas de seus princípios,
as investidas para eliminar a violência continuarem restritas a questões sobre
a violência direta de grupos notadamente violentos (como ocorre no standard operation
procedure), violências domésticas de outro tipo podem ganhar intensidade; além
de uma institucionalização do combate àqueles grupos ou esses outros tipos de
violência poder clonar os quadros atuais de guerra (p. 15). Além disso, a
questão do armamento nuclear e implicações políticas do clube dos nucleares
persistirá como problema, mas provavelmente sem a sinergia de movimentos
pacifistas e antinucleares que ocorreu na Guerra Fria (p. 17). Quanto ao debate
epistemológico, o realismo encontra novo quadro de existência após o 11/9, que
reafirma a ideia de inevitabilidade de conflitos (p. 16), além de a existências
de guerras atuais (como EUA x Iraque) se apoiarem em valores de democracia e
comunidade no meio internacional para se legitimarem, ou seja: o realismo,
reiterando práticas de violência na estrutura internacional, ressurge com
resiliência discursiva, dando conta de dialogar com as mudanças ocorridas no
sistema desde os anos 90 (p. 17).
Assim, tanto para se implementar princípios
dos Estudos de Paz eficientemente quanto
para não congelar o progresso epistemológico crítico dessa disciplina –
levando em consideração todas as implicações disso, mencionadas e explicadas no
texto abordado –, o que ela deve deve buscar agora é uma radicalização de sua
abordagem crítica segundo os princípios pós-positivistas (p. 17-18).
[1] José Manuel Pureza é Professor de
Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
onde coordena o Mestrado em Relações Internacionais e o Doutoramento em
Política Internacional e Resolução de Conflitos. É igualmente coordenador
científico do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies,
iniciativa conjunta do Centro de Estudos Sociais e do Instituto de Investigação
Interdisciplinar da Universidade de Coimbra. Atualmente (2015) foi eleito para
o parlamento de Portugal pelo Bloco de Esquerda.
Teresa Almeida Cravo é Investigadora do Núcleo de Estudos sobre Humanidades,
Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP) do Centro de Estudos Sociais e
Professora Auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra. É atualmente co-coordenadora do Doutoramento em Democracia XXI
(FEUC-CES) e coordenadora do Mestrado em Relações Internacionais (FEUC).
[2] Pesquisador PIBIC/CNPq no projeto “O
desafio da construção da paz na América do Sul: as perspectivas de entidades de
análise de conflitos e a atuação da UNASUL frente aos litígios potenciais”,
examinando o plano de trabalho “A atuação da UNASUL na contenção da violência
de atores não-estatais no Equador e Peru”, orientado pelo Prof. Marcos Alan Ferreira.
[3] Ou Estudos de Paz.
Cf. “Investigação para a Paz: Passado, presente e futuro” (Håkan Wberg, Revista
Crítica de Ciências Sociais, 71, Junho 2005: 21-42).
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