segunda-feira, 5 de outubro de 2015

RESENHA: “MARGEM CRÍTICA E LEGITIMAÇÃO NOS ESTUDOS PARA A PAZ”

José Manuel Pureza e Teresa Cravo*

publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, no. 71, junho/2005.

por Theo A. R. Sant'Ana[2]

Apresentado em reunião do GEPASM (Núcleo DRI/UFPB) em Outubro/2015.


A vertente realista das Relações Internacionais (RI), mainstream desse campo de estudos e representante de um modus operandi positivista, vem sendo criticada e questionada – inclusive em seus caracteres liberais –  por um conjunto diverso de vertentes de estudo pós-positivistas desde a segunda metade do século XX. O que Pureza e Cravo apontam é que os Estudos para a paz consolidaram-se como materialização dos desejos pós-positivistas, mas  vêm deixando subverter sua postura epistemológica, antes estado da arte de capacidade crítica, esvaziando-se como fonte de contestação teórica. Além da capacidade crítica do campo estar minada, outra consequência é que aplicações do campo de Estudos de Paz vêm reiterando estruturas de dominação – das quais o próprio realismo nas RI faz parte, em seu discurso – antes criticados pela própria área.
O argumento é dividido em três partes, coincidentes com as seções do texto: “Itinerário de uma ruptura anunciada” (pp. 6-10) apresenta a seara dos Estudos de Paz segundo seu papel rompedor de paradigmas dentro das RI, uma função buscada na própria área, sobretudo nos anos 1980; “Emancipação ou padronização?” (pp. 10-14) mostra a aceitação de preceitos e valores dos Estudos de Paz em políticas globais, contraposta à padronização indevida desses mesmos princípios mundialmente; e “Caminhos e descaminhos de um retorno à crítica” (pp. 14-17) coloca o enfraquecimento da capacidade crítica dos Estudos de Paz, acompanhado do ressurgimento do paradigma realista das RI.
Os autores relembram que as tentativas de um estudo alternativo às RI em meados do século XX ainda tinham como problemas analíticos vieses fortemente ligados à matriz positivista – especialmente o viés realista das RI (p. 7) –  e o estatocentrismo (p. 9) (grifos meus). O positivismo é visto de forma negativa, especialmente por suas cláusulas de imparcialidade do pesquisador e do descompromisso da ciência frente a valores; e a reminiscência do estatocentrismo refletia a dificuldade em criar um estudo objetivo sobre a paz em detrimento  do Estado (grifos meus).
O triunfo sobre esses problemas analíticos se deve fortemente à compreensão do norueguês Johan Galtung. Com os conceitos de paz negativa e positiva, Galtung supera o estatocentrismo, imbuindo esses conceitos de críticas ferinas às estruturas de poder vigentes e a geração de desigualdades (p. 8). A escalada do campo para bases mais críticas e não positivistas decorre do triângulo da violência (representação gráfica da tripartição desse conceito), em dois passos:
1.    Ampliação da capacidade explicativa dos Estudos de Paz, ao abordar a violência – e por correspondência dialética a paz – em seus níveis direto (como “acto intencional de agressão”), estrutural (ou indireta, decorrente “da estrutura social em si entre humanos ou sociedades – a repressão, na sua forma política, ou a exploração, na sua forma económica;”), e cultural (que é “subjacente à estrutural e à directa, constituindo o sistema de normas e comportamentos que legitima socialmente as anteriores”) (p. 9);
2.    Expõe a insuficiência analítica tradicional (p. 10), propondo  os problemas de (i) reprodução da hierarquização entre centro e periferia, (ii) legitimação dessa hierarquização pelo paradigma dominante nas Relações Internacionais (o realismo), e (iii) fôlego insuficiente dos Estudos de Paz para desafiar os dois problemas anteriores.
Além de os Estudos de Paz serem eminentemente multidisciplinares, a segunda cláusula positivista (de descompromisso científico com valores) é rompida ao se colocar o campo de estudos como ciência normativa de justificativa ética (p. 8). Em suma, nos anos 80 há a erupção do pensamento buscador da Paz a nível mundial e dos Estudos para a Paz como escola diversa, de base institucional-acadêmica sólida (p. 10).
Nos anos 90 há grande absorção dos princípios dos Estudos de Paz nas políticas de nível global, com uma cópia do quadro conceitual de Galtung dos anos 70 na Agenda para a Paz de 1992 (p. 11), documento do então Secretário Geral da ONU, Boutros Ghali. Razão disso se dá pelo livramento de conflitos político-diplomáticos e surgimento de conflitos civis bastante violentos (p. 10). Após ampla aceitação, os preceitos dos Estudos de Paz absorvidos  pela ONU, a comunidade científica, organizações multilaterais e diversas ONGs passaram a ser utilizados para a implementação de políticas (p. 11). A absorção nesses termos resultou na colonização do conhecimento dos Estudos para a Paz e a decadência desse campo como margem crítica para as RI.
A “colonização” se refere às mazelas da conduta generalista em processos de peace building: ao examinar os estados falidos com o conhecimento que se tinha sobre os Estudos de Paz, criou-se um receituário universal para a solução desses problemas, aplicado em casos diversos sem se atentar a particularidades de cada situação – no que se chama standard operation procedure. Por ser um modelo de ação globalizado nas dimensões militar e de segurança, político-constitucional, econômico-social e psicossocial (p. 12) disseminador do modelo internacionalista liberal – que se apoia principalmente sobre a democracia de competição eleitoral e a economia de mercado –, o standard operation procedure tem, como alguns de seus problemas, a insensibilidade de tropas operantes frente os locais e a rejeição local daquela receita liberal (loc. cit.).
A decadência do campo como margem crítica para as RI decorre da predeterminação institucional dos Estudos de Paz (a exemplo do standard operation procedure), que limita inputs criativos, críticos e construtivistas. Utilizando a menção dos autores à “articulação kuhniana” entre paradigma (a sobreposição de visões de uma comunidade científica sobre um objeto de estudo) e ciência normal (mapa do conhecimento legítimo de uma comunidade científica) (pp. 6, 11); o que ocorre com a absorção de preceitos de Estudos de Paz por instituições políticas é a constrição da construção de novos paradigmas e o aumento da ciência normal. Ficam escanteadas possibilidades de expansão via teorias e práticas do desenvolvimento, teoria crítica social, análise cultural e de identidade sexual, etc. (p. 13).
Desafios para que os Estudos de Paz retornem à crítica (que é como os fundadores da disciplina a encaminharam) são a incorporação dos Estudos de Paz às estruturas de poder anteriormente por eles criticadas (p. 13, 14), a ineficiência do campo para solução dos problemas a que se propõe resolver e a deslegitimação do campo.
A incorporação institucional dos Estudos de Paz ocorre pela utilização de pesquisadores em trabalhos de auditoria (p. 14), que reflete o inchaço da ciência normal aliado à constrição dos paradigmas; o congelamento do criticismo epistemológico dos Estudos de Paz pode ser o ingresso desse campo de estudos para as instituições que antes eram por ele mesmo criticadas.
A ineficiência dos Estudos de Paz pode se dar tanto nas aplicações políticas de seus princípios – com restrições institucionais à sua capacidade crítica – quanto no debate epistemológico – gerando problemas de legitimidade. Nas aplicações políticas de seus princípios, as investidas para eliminar a violência continuarem restritas a questões sobre a violência direta de grupos notadamente violentos (como ocorre no standard operation procedure), violências domésticas  de outro tipo podem ganhar intensidade; além de uma institucionalização do combate àqueles grupos ou esses outros tipos de violência poder clonar os quadros atuais de guerra (p. 15). Além disso, a questão do armamento nuclear e implicações políticas do clube dos nucleares persistirá como problema, mas provavelmente sem a sinergia de movimentos pacifistas e antinucleares que ocorreu na Guerra Fria (p. 17). Quanto ao debate epistemológico, o realismo encontra novo quadro de existência após o 11/9, que reafirma a ideia de inevitabilidade de conflitos (p. 16), além de a existências de guerras atuais (como EUA x Iraque) se apoiarem em valores de democracia e comunidade no meio internacional para se legitimarem, ou seja: o realismo, reiterando práticas de violência na estrutura internacional, ressurge com resiliência discursiva, dando conta de dialogar com as mudanças ocorridas no sistema desde os anos 90 (p. 17).
Assim, tanto para se implementar princípios dos Estudos de Paz eficientemente quanto  para não congelar o progresso epistemológico crítico dessa disciplina – levando em consideração todas as implicações disso, mencionadas e explicadas no texto abordado –, o que ela deve deve buscar agora é uma radicalização de sua abordagem crítica segundo os princípios pós-positivistas (p. 17-18).





[1] José Manuel Pureza é Professor de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde coordena o Mestrado em Relações Internacionais e o Doutoramento em Política Internacional e Resolução de Conflitos. É igualmente coordenador científico do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies, iniciativa conjunta do Centro de Estudos Sociais e do Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra. Atualmente (2015) foi eleito para o parlamento de Portugal pelo Bloco de Esquerda.
Teresa Almeida Cravo é Investigadora do Núcleo de Estudos sobre Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP) do Centro de Estudos Sociais e Professora Auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. É atualmente co-coordenadora do Doutoramento em Democracia XXI (FEUC-CES) e coordenadora do Mestrado em Relações Internacionais (FEUC).
[2] Pesquisador PIBIC/CNPq no projeto “O desafio da construção da paz na América do Sul: as perspectivas de entidades de análise de conflitos e a atuação da UNASUL frente aos litígios potenciais”, examinando o plano de trabalho “A atuação da UNASUL na contenção da violência de atores não-estatais no Equador e Peru”, orientado pelo Prof. Marcos Alan Ferreira.
[3] Ou Estudos de Paz. Cf. “Investigação para a Paz: Passado, presente e futuro” (Håkan Wberg, Revista Crítica de Ciências Sociais, 71, Junho 2005: 21-42).

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