Ainda
sobre a reunião do GEPASM sobre Arte e Construção de Paz do dia 03 de Outubro,
um dos textos debatidos foi L’art
et Résolution des Conflits da
teórica Valerie Rousoux, sendo um capítulo do livro Culture et relations
internationales (2007) de Françoise Massart-Pierard.
Rosoux
traz uma abordagem deveras interessante para um estudo introdutório das artes
na resolução de conflitos. Primeiramente, apresentando a visão de Jean Barrea
sobre as artes nas relações internacionais, depois ilustrando o papel da arte
na propaganda para a paz; em seguida, a autora sintetiza a atuação da
Organização Não-Governamental RCN Justice et Démocratie ao usar
a arte para promover a paz em Burundi, na região dos Grandes Lagos Africanos,
finalizando com algumas conclusões e profundos questionamentos.
De
acordo com Rosoux, ao reformular as Teorias das Relações Internacionais, Jean
Barrea ressalta a necessidade de sair das teorias tradicionais para abordar a
arte como ampliadora da realidade internacional e, então, poder-se-á considerar
o papel da arte na resolução de conflitos.
Então,
Rosoux ressalta que ao longo de toda a história das relações internacionais,
nota-se o uso da arte na política, principalmente, como instrumento de
propaganda nacionalista, cujo papel é traçar perfis da identidade “inimiga”,
como no exemplo dado pela autora, das relações franco-alemãs no século XIX, em
que os franceses retratavam os alemães como os “maus” e se autodeterminavam
como os “bons” e “civilizados”, a partir deste discurso, legitimou-se a
violência contra o povo identificado como “bárbaro”.
Tendo
em vista o conceito de transubjetividade que, embasada na obra A Poética do Espaço (1978) de
Gaston Bachalard, Cynthia Cohen em Engaging
with the Arts to Promote Coexistence (2003)
expõe-no como o efeito da imagem/estética alheia sobre nós mesmos. Cohen também
ressalta que as crianças somente desenvolvem uma identidade étnica ou nacional
a partir do momento em que ela captura os símbolos externalizados pelo grupo em
que estão inseridas; símbolos esses que podem criar uma imagem “transubjetiva”
de que outro grupo étnico ou nacional é inimigo. Logo, percebe-se como a
propaganda francesa influenciou na transubjetividade de efeito negativo sobre a
construção da identidade de seu povo e de outrem.
No entanto,
Rosoux também apresenta como o uso da arte na política como instrumento de
propaganda pode repercutir de forma positiva, dando o exemplo da West-Eastern Divan Orchestra,
fundada por Daniel Barenboim em 1999, com o apoio de Edward Said, reunindo através
da música diversos grupos culturais/étnicos/nacionais, como palestinos,
israelenses, egípcios, jordanianos, etc. Mesmo não alcançando efetivamente os
países alvos, acabou por ampliar a percepção internacional acerca dos conflitos
na região, ou seja, apresenta outra perspectiva de intervenção nos conflitos do
Oriente Médio, desta vez a propaganda tentando suavizar as interações que
estigmatizam o inimigo.
Ainda
analisando o papel da arte na política, Rosoux a associa com a gestão de
conflitos não estatais do passado, percebendo que as expressões artísticas têm
uma carga emocional em relação ao passado tão forte que muitas vezes impedem o
questionamento de suas próprias representações, mas percebe-se que o
questionamento das suas próprias representações artísticas e das representações
dos outros são condições fundamentais para a transformação das relações entre
as partes.
Daí
Rosoux apresenta a concepção de artista de Cohen, dizendo que os artistas
utilizam a arte em suas mais variadas formas para promover o compartilhamento
de experiências entre grupos outrora beligerantes. Porque Cohen entende que o
processo de reconciliação entre grupos sociais de uma ou mais comunidades vai
além da coexistência não-violenta, a reconciliação tende a transformar as relações
entre esses grupos, substituindo o ódio pela confiança, proporcionando também,
a partir da ótica do indivíduo, uma jornada de (re)aprendizado sobre si mesmo,
sobre sua comunidade e sobre outrem.
E nesse
mesmo sentido, Rosoux apresenta Beatrice Pouligny que entende a arte como forma
de comunicação e os artistas “reinventam a paz” ao estabelecer a comunicação do
“público” com as emoções. Assim como Schirch e Shank, em Strategic Arts Based Peacebuilding (2008), falam da arte como uma
forma de comunicação e de expressão dos seres humanos, portanto,
caracterizando-se como instrumento de funções sociais, tendo em vista a
capacidade das artes de transformar o modo de agir e pensar das pessoas e,
consequentemente, influenciando na dinâmica dos conflitos.
Então,
analisa-se a atuação da ONG RCN
Justice et Démocratie em
Burundi que, desde sua independência em 1962, vem sofrendo com diversos golpes
e massacres, além de haver o que Rosoux chama de “ressentimento histórico”
entre os grupos étnicos Hutu, Tutsi e Twa. Por isso, a RCN implementou medidas
junto à sociedade civil, na tentativa de recompor uma unidade identitária e
desenvolver a empatia entre eles.
Inicialmente,
a RCN coletou 260 histórias de atos ocorridos nas colinas do Burundi durante a
guerra civil, tentando reproduzir atos que substituíssem figuras relacionadas à
violência por figuras de justiça e solidariedade; posteriormente, essas
histórias foram direcionadas para a educação primária e secundária. Contudo,
essas histórias também serviram para grupos de apoio e para performances
teatrais, que deram origem a dois espetáculos cujos elencos eram formados por
atores das três etnias. Esses espetáculos foram montados a partir de Workshops
dados aos diversos segmentos da população, dividindo-se em duas etapas: Na
primeira, trabalhou-se a identidade, consciência e julgamento do ator e
espectador; já na segunda, voltou-se para os conflitos, sofrimentos
(sentimentos) e justiça.
Imagem:
THÉÂTRE & RÉCONCILIATION
As
performances já foram apresentadas a mais de 68.000 burundienses, evitando-se
locais rígidos como prédios do Estado ou da Igreja, impulsiona-se depois do
show um diálogo entre o “público”, os atores, representantes da comunidade e
dois psicólogos. Para Frédérique Lecomte, autor das peças, o grande número de
participantes significa que as representações artísticas realmente
representaram o sofrimento do povo burundiense, mas não só o representou,
levou-o, também, ao questionamento dos outros e de si. Logo, percebe-se o papel
da arte não só como canal de catarse do indivíduo, mas também como canal de
reflexão do indivíduo sobre os outros. Para Pierre Vincke, diretor da RCN, a
função da ficção é permitir a descrição do indescritível, tendo a capacidade de
abordar o passado traumático e foi exatamente o que aconteceu com as
performances desenvolvidas no Burundi.
Contudo,
Rosoux afirma que apenas o uso da arte na resolução de conflitos é
insuficiente, a autora infere que é ilusão esperar que a arte possa preencher
todas as lacunas deixadas pela guerra, mas deve-se visualizá-las como poderoso
instrumento capaz de transformar a dinâmica dos conflitos.
Portanto,
Rosoux elenca três condições para conectar o mundo das ideias (base da cultura)
com a arte. Primeiramente, quando pensado em longo prazo, a arte se torna ainda
mais eficiente na transformação do conflito. Por conseguinte, deve-se
considerar a importância do artista num amplo contexto, ressaltando que os
projetos artísticos dirigidos à população somente fazem sentido quando
aparelhados a ações mais convencionais, por exemplo, na área econômica,
política, institucional ou de segurança; essa segunda condição, corrobora com a
teoria de Segurança e
Emancipação (1991) de Ken
Booth, na qual ele diz que a liberdade
é o principal valor da emancipação, portanto, deve-se haver liberdade econômica
para assegurar a liberdade política dos povos, confirmando também a importância
do Estado, uma instituição que se faz necessária como um meio para que os povos
atinjam seus fins, assim como a segurança militar é relevante, desde que não
seja em detrimento da segurança humana. Já a terceira condição é perceber que a
realidade internacional possibilita a analise das relações, não somente dos
interesses e problemas.
REFERÊNCIAS:
BACHELARD, GASTON. A Poética do Espaço. In: Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Abril S.A. Cultural & Industrial, 1978.
BOOTH, Ken, Security and emancipation, Review of International Studies 17, 313-326, 1991.
COHEN, Cynthia. Engaging with the Arts to Promote Coexistence. In: Imagine Coexistence: Restoring Humanity after Violent Ethnic Conflict. edited by Martha Minow and Antonia Chaves. Hoboken, NJ: Jossey-Bass, 2003.
SHANK, Michel; SCHIRCH, Lisa. Strategic Arts Based Peacebuilding. Peace & Change, 33.2, p. 217-242, 2008.
ROSOUX, Valérie. Arts et Résolution des Conflits. In. F. Massart (dir.), Culture et relations internationales, Presses universitaires de Louvain, p. 101-110, 2007.
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