quarta-feira, 7 de outubro de 2015

RESENHA – "ARTE E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS" DE VALERIE ROSOUX

Ainda sobre a reunião do GEPASM sobre Arte e Construção de Paz do dia 03 de Outubro, um dos textos debatidos foi L’art et Résolution des Conflits da teórica Valerie Rousoux, sendo um capítulo do livro Culture et relations internationales (2007) de Françoise Massart-Pierard.
Rosoux traz uma abordagem deveras interessante para um estudo introdutório das artes na resolução de conflitos. Primeiramente, apresentando a visão de Jean Barrea sobre as artes nas relações internacionais, depois ilustrando o papel da arte na propaganda para a paz; em seguida, a autora sintetiza a atuação da Organização Não-Governamental RCN Justice et Démocratie ao usar a arte para promover a paz em Burundi, na região dos Grandes Lagos Africanos, finalizando com algumas conclusões e profundos questionamentos.
De acordo com Rosoux, ao reformular as Teorias das Relações Internacionais, Jean Barrea ressalta a necessidade de sair das teorias tradicionais para abordar a arte como ampliadora da realidade internacional e, então, poder-se-á considerar o papel da arte na resolução de conflitos.
Então, Rosoux ressalta que ao longo de toda a história das relações internacionais, nota-se o uso da arte na política, principalmente, como instrumento de propaganda nacionalista, cujo papel é traçar perfis da identidade “inimiga”, como no exemplo dado pela autora, das relações franco-alemãs no século XIX, em que os franceses retratavam os alemães como os “maus” e se autodeterminavam como os “bons” e “civilizados”, a partir deste discurso, legitimou-se a violência contra o povo identificado como “bárbaro”.
Tendo em vista o conceito de transubjetividade que, embasada na obra A Poética do Espaço (1978) de Gaston Bachalard, Cynthia Cohen em Engaging with the Arts to Promote Coexistence (2003) expõe-no como o efeito da imagem/estética alheia sobre nós mesmos. Cohen também ressalta que as crianças somente desenvolvem uma identidade étnica ou nacional a partir do momento em que ela captura os símbolos externalizados pelo grupo em que estão inseridas; símbolos esses que podem criar uma imagem “transubjetiva” de que outro grupo étnico ou nacional é inimigo. Logo, percebe-se como a propaganda francesa influenciou na transubjetividade de efeito negativo sobre a construção da identidade de seu povo e de outrem.
No entanto, Rosoux também apresenta como o uso da arte na política como instrumento de propaganda pode repercutir de forma positiva, dando o exemplo da West-Eastern Divan Orchestra, fundada por Daniel Barenboim em 1999, com o apoio de Edward Said, reunindo através da música diversos grupos culturais/étnicos/nacionais, como palestinos, israelenses, egípcios, jordanianos, etc. Mesmo não alcançando efetivamente os países alvos, acabou por ampliar a percepção internacional acerca dos conflitos na região, ou seja, apresenta outra perspectiva de intervenção nos conflitos do Oriente Médio, desta vez  a propaganda tentando suavizar as interações que estigmatizam o inimigo.
Ainda analisando o papel da arte na política, Rosoux a associa com a gestão de conflitos não estatais do passado, percebendo que as expressões artísticas têm uma carga emocional em relação ao passado tão forte que muitas vezes impedem o questionamento de suas próprias representações, mas percebe-se que o questionamento das suas próprias representações artísticas e das representações dos outros são condições fundamentais para a transformação das relações entre as partes.
Daí Rosoux apresenta a concepção de artista de Cohen, dizendo que os artistas utilizam a arte em suas mais variadas formas para promover o compartilhamento de experiências entre grupos outrora beligerantes. Porque Cohen entende que o processo de reconciliação entre grupos sociais de uma ou mais comunidades vai além da coexistência não-violenta, a reconciliação tende a transformar as relações entre esses grupos, substituindo o ódio pela confiança, proporcionando também, a partir da ótica do indivíduo, uma jornada de (re)aprendizado sobre si mesmo, sobre sua comunidade e sobre outrem.
E nesse mesmo sentido, Rosoux apresenta Beatrice Pouligny que entende a arte como forma de comunicação e os artistas “reinventam a paz” ao estabelecer a comunicação do “público” com as emoções. Assim como Schirch e Shank, em Strategic Arts Based Peacebuilding (2008), falam da arte como uma forma de comunicação e de expressão dos seres humanos, portanto, caracterizando-se como instrumento de funções sociais, tendo em vista a capacidade das artes de transformar o modo de agir e pensar das pessoas e, consequentemente, influenciando na dinâmica dos conflitos.
Então, analisa-se a atuação da ONG RCN Justice et Démocratie em Burundi que, desde sua independência em 1962, vem sofrendo com diversos golpes e massacres, além de haver o que Rosoux chama de “ressentimento histórico” entre os grupos étnicos Hutu, Tutsi e Twa. Por isso, a RCN implementou medidas junto à sociedade civil, na tentativa de recompor uma unidade identitária e desenvolver a empatia entre eles.
Inicialmente, a RCN coletou 260 histórias de atos ocorridos nas colinas do Burundi durante a guerra civil, tentando reproduzir atos que substituíssem figuras relacionadas à violência por figuras de justiça e solidariedade; posteriormente, essas histórias foram direcionadas para a educação primária e secundária. Contudo, essas histórias também serviram para grupos de apoio e para performances teatrais, que deram origem a dois espetáculos cujos elencos eram formados por atores das três etnias. Esses espetáculos foram montados a partir de Workshops dados aos diversos segmentos da população, dividindo-se em duas etapas: Na primeira, trabalhou-se a identidade, consciência e julgamento do ator e espectador; já na segunda, voltou-se para os conflitos, sofrimentos (sentimentos) e justiça.


As performances já foram apresentadas a mais de 68.000 burundienses, evitando-se locais rígidos como prédios do Estado ou da Igreja, impulsiona-se depois do show um diálogo entre o “público”, os atores, representantes da comunidade e dois psicólogos. Para Frédérique Lecomte, autor das peças, o grande número de participantes significa que as representações artísticas realmente representaram o sofrimento do povo burundiense, mas não só o representou, levou-o, também, ao questionamento dos outros e de si. Logo, percebe-se o papel da arte não só como canal de catarse do indivíduo, mas também como canal de reflexão do indivíduo sobre os outros. Para Pierre Vincke, diretor da RCN, a função da ficção é permitir a descrição do indescritível, tendo a capacidade de abordar o passado traumático e foi exatamente o que aconteceu com as performances desenvolvidas no Burundi.
Contudo, Rosoux afirma que apenas o uso da arte na resolução de conflitos é insuficiente, a autora infere que é ilusão esperar que a arte possa preencher todas as lacunas deixadas pela guerra, mas deve-se visualizá-las como poderoso instrumento capaz de transformar a dinâmica dos conflitos.
Portanto, Rosoux elenca três condições para conectar o mundo das ideias (base da cultura) com a arte. Primeiramente, quando pensado em longo prazo, a arte se torna ainda mais eficiente na transformação do conflito. Por conseguinte, deve-se considerar a importância do artista num amplo contexto, ressaltando que os projetos artísticos dirigidos à população somente fazem sentido quando aparelhados a ações mais convencionais, por exemplo, na área econômica, política, institucional ou de segurança; essa segunda condição, corrobora com a teoria de Segurança e Emancipação (1991) de Ken Booth, na qual ele diz que a liberdade é o principal valor da emancipação, portanto, deve-se haver liberdade econômica para assegurar a liberdade política dos povos, confirmando também a importância do Estado, uma instituição que se faz necessária como um meio para que os povos atinjam seus fins, assim como a segurança militar é relevante, desde que não seja em detrimento da segurança humana. Já a terceira condição é perceber que a realidade internacional possibilita a analise das relações, não somente dos interesses e problemas.


REFERÊNCIAS:

BACHELARD, GASTON. A Poética do Espaço. In: Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Abril S.A. Cultural & Industrial, 1978.

BOOTH, Ken, Security and emancipation, Review of International Studies 17, 313-326, 1991.

COHEN, Cynthia. Engaging with the Arts to Promote Coexistence. In: Imagine Coexistence: Restoring Humanity after Violent Ethnic Conflict. edited by Martha Minow and Antonia Chaves. Hoboken, NJ: Jossey-Bass, 2003.

SHANK, Michel; SCHIRCH, Lisa. Strategic Arts Based Peacebuilding. Peace & Change, 33.2, p. 217-242, 2008.

ROSOUX, Valérie. Arts et Résolution des Conflits. In. F. Massart (dir.), Culture et relations internationales, Presses universitaires de Louvain, p. 101-110, 2007.

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