quinta-feira, 8 de outubro de 2015

RESENHA: “INVESTIGAÇÃO PARA A PAZ: PASSADO, PRESENTE E FUTURO” (HAKAN WIBERG)

RESENHA: “INVESTIGAÇÃO PARA A PAZ: PASSADO, PRESENTE E FUTURO” (HAKAN WIBERG1), publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, no. 71, junho/2005.

por Erick Patrício de Magalhães Vieira2

Apresentado em reunião do GEPASM (Núcleo DRI/UFPB) em Outubro/2015.

Desde sua gênese, a disciplina de Investigação para a Paz passou por diversas crises de identidade enquanto buscava firmar-se em um campo epistemológico. Hakan Wiberg¹, renomado peace researcher sueco, propõe-se a delimitar três questões essenciais decorrentes do processo de construção e afirmação da disciplina: o alcance de sua orientação para valores políticos concretos; lugar que ocupa em um campo cognitivo disputado; e a densidade conferida à não-violência na transformação política. Dividido em oito seções, buscou-se discorrer sobre todas as propostas do autor atentando para suas questões mais primordiais, fato que demanda um tratamento prioritário diferenciado entre os tópicos a seguir. No mais, procurou-se interligar as discussões em um corpo único, porém bem delimitado.
Antes de adentrar na História da disciplina, Wiberg aborda as diferentes nuances oncológicas em torno da definição da expressão peace reseach, ou "investigação para a paz", por diferentes idiomas, institutos e investigadores da paz. A primeira controvérsia sobre uma definição uniforme ocorre mediante o uso do termo "paz" por muitas culturas para expressar diferentes combinações de valores sob ênfases relativas. O termo "investigação", por sua vez, denota a existência de critérios para que tal processo seja considerado "investigação ou científico". A terceira controvérsia surge do questionamento "o que se quer dizer quando se junta 'paz' e 'investigação' em uma única expressão"? (pp. 21-22)
Para os fins deste artigo, Wiberg faz uso da oncologia ao utilizar noções amplamente compartilhados por estudiosos que autodenominam-se como "investigadores da paz" (p. 22).
Hakan faz então um retrospecto (p. 23) dos números apresentados pela disciplina:
Há 40 anos: surgimento da Peace Research, com poucos institutos, revistas especializadas e associações recém-criadas.
Há 30 anos: centenas de institutos, dezenas de revistas, associações e congressos nacionais e regionais.
Há 20 anos: números maiores, mas o crescimento rápido havia cessado.
Atualmente: a disciplina atingiu sua maioridade, com obras reconhecendo grandes estudiosos, diretórios, bibliografias e a história da disciplina.
Quando do surgimento dos primeiros institutos na região do Atlântico Norte protestante, o "desenvolvimento posterior apresenta duas vertentes: ao mesmo tempo em que naquela região se criam institutos novos, certas tradições que vigoravam na América Latina [...] e noutros lugares começaram a identificar-se como sendo Investigação para a Paz" (p.23), dinamizando a abrangência de sua agenda.
Segundo o autor, a "história da Investigação para a Paz é, em grande medida, a história das suas crises" (p.23). Hakan destaca três grandes crises responsáveis por moldar a disciplina ao longo de sua história, definindo suas agendas, epistemologia e conceituações: a primeira crise se deu sobre as agendas legítimas que seriam objeto de investigação. A segunda crise favoreceu algumas agendas exclusivamente para encontrar um cerne da disciplina e sua identidade própria. A terceira crise "prendeu-se com o êxito [...] da ideia de transcender a Guerra Fria" (p. 24).
Ao discorrer sobre as crises, Hakan explana que a primeira crise (1970), teve uma envolvência multifacetada. Entre os fatores envolvidos, destacam-se as polêmicas de natureza científica e acadêmica, o alargamento da disciplina mediante a incorporação de novas tradições e as discussões sobre a "nova" e a "velha" agenda. A "nova" agenda, segundo o autor, "propunha debruçar-se sobre a exploração, a dominação e a dependência, o imperialismo, etc." (p.24), acusando o grupo da velha agenda de "investigação para a pacificação" (em vez de emancipatória), "investigação liberal para a paz" (ao invés de crítica), ao que o grupo da velha agenda acusava o novo de promover revolução armada para a paz (p. 24).
A primeira crise produziu diversos resultados importantes: a comunidade da disciplina passou a priorizar soluções do tipo copulativo (x e y) ao invés de soluções do tipo disjuntivo (x ou y), gerando fenômenos de sinergias entre as agendas. Entre outros resultados, destacam-se a "teoria estrutural da violência", de Johan Galtung, onde violência estrutural era contraposta à noção de paz positiva; a tese de doutoramento de Wallenstein (1973) sobre as relações empíricas entre as estruturas do comércio e as estruturas da guerra; além do rápido crescimento da disciplina (pp. 24-25).
Por sua vez, a segunda crise foi consequência da primeira, com o sucesso das negociações e o alargamento da agenda que desta resultara. A segunda crise foi uma crise de identidade da Investigação para a Paz. Hakan argumenta que existiam dois tipos de institutos: aqueles com mandato e agenda razoavelmente limitados e outros com a agenda alargada da comunidade. Os institutos com agenda limitada "tenderam a sobreviver e a prosperar", enquanto aqueles com agenda ampla tiveram grandes problemas (p. 26). De modo geral, durante a segunda crise surgiram novos institutos e a comunidade de investigadores cresceu em demasia.
O fim da Guerra Fria provocou a terceira crise na medida em que gerou questionamentos no interior de diversas disciplinas, entre elas a Investigação para a Paz: "Por que a incapacidade de o prever? Quais tradições de investigação prosseguir e aprofundar? Quais tópicos acrescentar à agenda?" (p. 26). Questões sobre a razão de ser e a identidade da disciplina levaram a disputas epistemológicas com outras disciplinas.
O autor argumenta ainda sobre o consenso existente na disciplina acerca da orientação em função dos valores, onde a Investigação para a Paz tem a ver/por base valores. Galtung já defendia essa ideia quando, fazendo analogia com a medicina e arquitetura, propunha a disciplina como "um triângulo completo, composto por dados, teorias e valores" (p. 27). Surgem então questões acerca dos valores e investigação e o trabalho concreto dos investigadores, em um debate teoria x prática. Esse debate visa expurgar dos trabalhos empíricos proposições de valor que venham a macular os resultados da investigação, extinguindo influências metafísicas através de critérios lógicos ; ou, no melhor dos casos, como explana Gunnar Myrdal (1958), tornar tais proposições de valor tão claras que sejam evidentes as conformidades das premissas com as conclusões normativas (pp.27-28).
Na terceira seção do artigo, Hakan trata da investigação para a paz orientada para políticas (concretas), preterindo a orientação para valores. Assim, surgem problemas como "política para quem?" Políticas para decisores, ou seja, governos e organizações internacionais, têm a vantagem de serem direcionadas diretamente àqueles que tomam decisões, mas possuem a desvantagem de que o valor "paz" não tenha a primazia nas prioridades elencadas por estes. Além disso, tais políticas podem ser, por vezes, deturpadas para adequar-se aos discursos dos decisores3. Não sendo os problemas descritos insuperáveis, o mesmo explica que o investigador atua mais fortemente no papel de conselheiro. Entretanto, não exclusivamente. O investigador pode também atuar na organização da política recomendada. Projetos como o TRANSCEND, de Johan Galtung, a TFF (Transnational Foundation for Peace and Future Research), sediada em Lund, e o projeto INCORE, da Universidade de Ulster, exercem tais papéis (pp.29-31).
Ao explanar brevemente sobre o que os investigadores de paz fazem de concreto, o autor questiona até que ponto a Investigação para a Paz se liga com a realidade efetiva da investigação, uma vez que é dotada de uma base de caráter valorativo, a cabo que ele mesmo responde que uma questão empírica pode ser conduzida pela análise do conteúdo de um fato, mas que uma "orientação de valores pode ser implícita e não, propriamente, algo de explicitamente formulado" (p.33), podem ser estas partes de um amplo projeto, separadas apenas por uma divisão de trabalho.
Na luta pelo seu território cognitivo, a história da disciplina de Investigação para a Paz está intimamente ligada às Ciências Políticas, às Relações Internacionais e aos Estudos Estratégicos, áreas que competem entre si por um território cognitivo. De modo geral, quando não da soberania plena de uma disciplina sobre o território, a coexistência entre as mesmas era regra, permitindo a criação das mais variadas coligações (p.34). Especificamente, Investigação para a Paz vê-se como uma "investigação aplicada", estudando o sistema internacional de uma perspectiva internacional. Abarcando as instituições e relações do objeto de estudo, a disciplina debruça-se sobre os conflitos, a paz e a guerra no interior dos Estados nacionais, funcionando também como especialização adequada (pp. 35-36).
Na seção em que trata das perspectivas de futuro, o autor destaca vertentes extrínsecas, ou seja, instituições e recursos para mostrar-se otimista no futuro da disciplina, apresentando diversas instituições criadas e desenvolvidas no nordeste da Europa (área onde concentra-se o maior número de institutos de referência), bem como o incentivo financeiro angariado por estas. Diante de poucos reveses, a disciplina encontra-se consolidada na região, com alta "densidade de investigação para a paz", e o surgimento de institutos e centros acadêmicos em países latinos e sudoeste da Europa, a exemplo de Coimbra e o centro com a revista especializada onde foi publicado o presente artigo.
Por fim, Hakan busca resgatar a discussão da primeira crise sobre a paz por meios pacíficos. Assim, a crescente institucionalização da Investigação para a Paz causará mais disputas por um território cognitivo para a disciplina. Para manter-se firme, o autor propõe um reforço para certas áreas de investigação para as quais (a disciplina) consiga reclamar uma especial singularidade ou em que possua tradições firmadas" (p. 37). Para isso, os investigadores deverão retomar a ideia de "paz por meios pacíficos" da primeira crise. Essa necessidade se dá em virtude do surgimento de noções como "violência benigna" durante a Guerra Fria, ou seja, lutar contra regimes opressivos e potências aliadas dos mesmos. Assim, a "paz por meios pacíficos" era necessária uma vez que esse tipo de violência "tende a deixar atrás de si uma pesada herança que consiste em passar a ver a violência como um instrumento político legítimo", segundo Hakan citando The Politics of Non-violent Action (1973), de Gene Sharp (pp. 37-38).
Além disso, novos eventos desencadeiam a discussão sobre a utilização de intervenções militares para fins pacíficos, seja através da recomendação das mesmas por investigadores de paz ou atuação em sua eventual organização. Aqui, fica evidente a perda de espaço da ação não-violenta na agenda desde os primeiros anos da disciplina. No passado, fazendo-se uso da versão gandhiana de Galtung de ação não-violenta, dos termos pragmáticos de Sharp ou dos termos clausewitzianos de Boserup e Mack (1975), ou outras versões, diversos casos de sucesso de não-violência foram registrados em todo o mundo (p. 38). Apesar desses exemplos, Hakan defende que a noção de paz por meios pacíficos vai muito além da não-violência. Abrange a busca por "alternativas à guerra ou à ameaça de guerra e sanções econômicas, como bem desenvolveram Galtung (1967) e sobretudo Wallensteen (1968) (p. 38).
Apesar de todas as alternativas, nos primeiros anos discutiu-se a criação de sistemas de paz, desenvolvidos a longo prazo visando encerrar conflitos de naturezas diversas através de soluções pacíficas conjuntamente construídas. Atualmente, essa discussão vem ganhando força, e há quem defenda, assim como o autor, a União Europeia como sistema de paz, uma vez que qualquer conflito interno, mesmo que grave, não possui perspectivas de ameaças militares (pp. 39-40).
Fato é que a Investigação para a Paz apresenta-se atualmente como uma vasta área de estudo, sobretudo pela dimensão multidimensional de paz. Permanecem os questionamentos quanto às disputas entre valores por sistemas dinâmicos e como transcorrerão as relações entre meios pacíficos e militares no que concerne à transformação e transcendências de conflitos (p.40).
1 Hakan Wiberg (1942-2010), renomado peace researcher sueco, trabalhou ativamente com Investigação da Paz em países nórdicos, destacam-se suas atividades na Universidade de Lund, Copenhague e no PRIO, em Oslo. Integrou o comitê editorial do Journal Peace Research por 33 anos. Sua formação multidisciplinar tornou-o influente em todo o mundo.
2 Pesquisador PIBIC/CNPq no projeto "O desafio da paz na América do Sul: as perspectivas de entidades de análise de conflitos e a atuação da UNASUL frente aos litígios potenciais", com o plano "Os diagnósticos sobre paz e segurança no paz: uma análise comparativa das bases de dados voltadas ao entendimento da paz e dos conflitos", sob orientação do Prof. Dr. Marcos Alan S. V. Ferreira.

3 Hakan compara a construção do discurso ao conceito do "Newspeak" (ou "Novilíngua), presente na obra orwelliana 1984 (Orwell, 1949). Remetendo à filosofia da linguagem, a discussão pode ser aprofundada em obras dos filósofos Platão, Aristóteles, Ferdinand de Saussure, Ludwig Wittgenstein, entre outros expoentes.

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