sábado, 26 de dezembro de 2015

A tragédia da vida, do teatro e da comédia: roubos, trapaças e transgressões

"Em Pádua, eu ia observar os peões vendendo seu gado na feira de pecuária, depois Sartori me levava às espeluncas da periferia da cidade para comer carne de cavalo defumada, no meio daqueles a quem ele chamava de 'ladrões de cavalos'. Senti naqueles bairros o que poderia ser uma autêntica commedia dell'arte, em que os personagens estão permanente na urgência de viver"
Jacques Lecoq, O Corpo Poético - uma pedagogia da criação teatral, 2010, p. 31


A viagem pela representação, ou pela expressão de si mesmo, ou das dores sociais, caminha por difícil trilha. Na verdade, é uma trilha que outros já percorreram, mas que se movimenta diferentemente de acordo com o tempo e o espaço de cada um, com suas dores e experiências peculiares.

Entender que a comédia é a expressão de uma urgência pela vida, onde as pessoas necessitam praticar pequenas ou grandes trapaças, e que, apesar de ter a vida no limite, no caminho marginal, ainda assim, ou por isso mesmo, provocam o riso, me faz lembrar de Tortell Poltrona, que aprende a comédia a partir das procissões religiosas na Espanha, onde a seriedade e a rigidez do ato religioso provoca a possibilidade de riso, quando as coisas ficam no limiar do desastre, da queda do santo, do tombo da freira, ou da forçada seriedade dos carolas.

A proximidade dos opostos que a comédia permite ver me liga também com o extravagante, obsceno e expressionista Frederico Fellini, em filmes como Amarcord, quando o filho de um torturado político dá gargalhadas ao ver o pai retornando completamente esgotado, sujo (na verdade, cagado) e pálido, após uma seção de torturas promovidas pela forçada ingestão de óleo de rícino, em quantidades desumanas.



Lembro-me também do belíssimo filme "As viagens do Capitão Tornado", onde uma companhia de teatro mambembe percorre os vilarejos, encenando trechos de commedia dell'arte. O mais chocante é quando um nobre, completamente desprovido de bens, que morava num castelo praticamente destruído e sem nenhum luxo, careca por ter raspado os cabelos por causa dos piolhos, resolve entrar na companhia de teatro e desempenha o papel do guerreiro, só que, no seu caso, totalmente desastrado, por ter medo, não ter ensaiado direito, e ter que agir num improviso desesperador.


O brilhantismo do ridículo nobre sem nobreza assemelha-se à ridícula desgraça do torturado, bem como às procissões, ou aos desfiles militares, "a um passo do ridículo", e ao ridículo desespero da vida dos marginalizados, dos bêbados, dos mendigos, dos famintos.

Entender a nobreza e a beleza da vida, na particularidade da expressão cômica, vem da capacidade de observação profunda das dores e das posturas rígidas, por um lado, ou flexíveis, por outro, dos que necessitam sobreviver agarrando-se a uma fé estreita, inflexível, mas que pode ser adulterada pela necessidade urgente da sobrevivência. Captar esses movimentos e colocá-los em cena, por meio do teatro, do ato cômico, da comédia, é um roubo, uma trapaça que devolve o frescor da vida, mas que necessita uma capacidade imensa de observação dos movimentos e das razões de existência, por mais absurdos que sejam ou pareçam.

Talvez isto possa explicar, em sua profundeza, traficantes dos morros do Rio expulsando terreiros de umbanda, a pedido de suas mães evangélicas. Ou mesmo as passeatas dos conservadores de direita (ah, eles também existem na esquerda, só que de outra forma), solicitando intervenções militares constitucionais, fazendo topless, ou posando do lado dos policiais, em selfies magníficos. 

E talvez Jacques Lecoq, com seu olhar humano, afirme que é possível relaxar os alemães no momento pós II Guerra, momento em que ele leva o teatro e os movimentos corporais, "desnazificando" os alemães. Talvez essa seja a forma de conversar com os fascistas, trapaceando-os, por meio do relaxamento e dos movimentos. 

Observemos. Tentemos. Ousemos. 


Um comentário:

  1. Depois de ter lido esse texto, Sabrina me enviou esse vídeo do Monthy Python - The Funniest Joke in the World. Muito bom mesmo!!!
    https://www.youtube.com/watch?v=Sr5HpgV42LQ

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